Início Cultura “Saudosa Maloca: ‘atravessou’ o samba”

“Saudosa Maloca: ‘atravessou’ o samba”

Por Marco de Cardoso

Você conhece o João Rubinato? Não? Tem certeza? Mas você provavelmente já deve ter ouvido alguém cantarolar a frase: ‘’Não posso ficar nem mais um minuto com você…’’.

Pois esta é uma frase famosa da música ‘’Trem das Onze’’ de autoria do João, ou melhor, Adoniran Barbosa, a alcunha artística que adotou e com a qual se consagrou, ficando nacionalmente conhecido.

O filme “Saudosa Maloca”, é uma tentativa desejosa de capturar a essência e o legado do icônico compositor e cantor Adoniran Barbosa, filho de imigrantes italianos sem muitos recursos, nascido na cidade de Valinhos (interior de SP) e que passou a vida na cidade de São Paulo, sendo considerado por muitos o ‘’inventor do samba paulista’’.

A proposta do roteiro do filme é colocar o artista, já idoso, numa mesa de bar, relembrando para um jovem garçom, passagens e ‘’causos’’ antigos da própria vida (envolvendo personagens das suas canções), com destaque para as reminiscências da ‘’maloca ‘’ (palavra de origem indígena que tem o sentido de casa ou habitação) que Adoniran (interpretado pelo músico e ator Paulo Miklos) dividiu no passado com os amigos Matogrosso (Gero Camilo) e Joca (Gustavo Machado).

O diretor Pedro Serrano é um especialista em Adoniran. Em 2015 dirigiu o curta-metragem ‘’Dá Licença de Contar’’ que já trazia o trio de protagonistas que vemos agora em ‘’Saudosa Maloca’’. Também assinou a direção do documentário “Adoniran, Meu Nome é João Rubinato’’ (2018) que ganhou os prêmios de Melhor Montagem e Melhor Trilha Sonora no 13º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro.

No entanto, a execução de ‘’Saudosa Maloca’’ deixa a desejar em diversos aspectos cruciais, resultando numa experiência que oscila entre o atrativo (pela obra musical) e o fragmentado, sem jamais alcançar o potencial pleno que a vida e a obra de Adoniran oferecem como material de inspiração. 

A tentativa de construir a narrativa a partir das letras, personagens e situações das letras das músicas do mestre, é uma boa ideia, mas na prática a sensação é que estamos vendo uma colagem de cenas, que passam longe de uma narrativa coesa e parecem mais uma sequência amontoada de ‘’videoclipes’’ grudados com cola caseira. O público que não está familiarizado com a vida e a obra do compositor, provavelmente vai sair do cinema sem uma compreensão adequada de sua importância e genialidade.

O filme tenta ainda debater a questão da especulação imobiliária e do crescimento urbano das cidades, ‘’esmagando’’ as populações, sobretudo as mais empobrecidas, um tema recorrente nas obras de Adoniran. No entanto, essa crítica pertinente e de grande relevância social acaba se perdendo numa montagem fracionada, o que reduz a chance de provocar uma reflexão mais aprofundada na plateia.

No que diz respeito às performances do elenco, Paulo Miklos entrega um esforço louvável na interpretação de Adoniran Barbosa, mas acaba não conseguindo totalmente transcender sua identidade artística pré-existente e algumas vezes parece que o ‘’músico dos Titãs’’ vai assumir a tela.

Gustavo Machado, interpretando um ‘’’malandro’’ de sotaque ‘’ítalo-brasileiro’’ soa meio forçado, não conseguindo convencer plenamente na pele de seu personagem.

O (bom) ator Paulo Tiefenthaler, por sua vez, interpreta Pereira, um ganancioso empreiteiro, de uma maneira que remete demais a seus papéis anteriores. A qualquer momento parece que vai falar ”batatinha Blade Runner” e outras frases cômicas que o consagraram no  ’’Larica Total”, misto de programa de culinária e humor que fez sua fama na tevê.

Já alguns dos melhores momentos de atuação do filme ficam com Gero Camilo, um excelente ator, principalmente com suas expressões corporais e faciais, que dá vida a um simpático e tocante Matogrosso. Sidney Santiago Kuanza também se destaca como Cícero, o garçom com aspirações artísticas, que atende e se torna fã e amigo de Adoniran.

Mas quem rouba a cena é a atriz e cantora Leilah Moreno, que interpreta Iracema (mais uma personagem de música de Adoniran), a paixão dos ‘’maloqueiros ‘’ Matogrosso e Joca e musa do botequim onde os moradores do bairro se encontram.

Leilah, muito conhecida do grande público por integrar a banda do programa ‘’Altas Horas’’ de Serginho Groisman na Rede Globo, traz autenticidade e profundidade emocional à sua Iracema, que se alterna entre ser a funcionária ‘’multitarefas’‘ do bar e o sonho de ser uma grande estilista de moda feminina, numa época (bem) ingrata para uma mulher que aspira ser independente.

Mas é a música de Adoniran Barbosa, sem dúvida, o elemento mais bem-sucedido do filme. Os melhores momentos de ‘‘Saudosa Maloca’’ ocorrem quando a poesia musical de Adoniran surge, seja em performances com cantores e instrumentistas ou pontuando as cenas como trilha sonora. Isso com certeza vai agradar aos ouvidos dos fãs do mestre do samba da ‘’Paulicéia’’. Mas convenhamos, é pouco.

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Marco de Cardoso é Diretor Cultural da AIB – Associação da Imprensa do Brasil